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SOBRE IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO

Serra, 10 de maio de 2020.

Olá crianças!

É a primeira vez que escrevo uma carta para crianças indígenas. Fico feliz, porque nesse tempo de quarentena em que as crianças estão em suas casas sem poder brincar com as outras crianças, escrever cartinhas é mesmo uma boa ideia.


Pretendo escrever como criança, não como um adulto próximo de completar cinquenta e seis anos de vida. E se há alguma coisa que as crianças gostam demais é perguntar. Elas parecem pequeninos jardineiros, ora plantando ora regando as perguntas para que elas não morram... é como se nos quisessem dizer para jamais desistirmos de perguntar.


Por falar em pergunta, como vocês estão? Tenho muita curiosidade em saber como é a rotina do dia a dia das crianças numa aldeia indígena. Do que vocês mais brincavam e agora não estão podendo? O que estão fazendo no horário em que estariam na escola? Assim que puderem escrevam-me dizendo como estão passando esse período de quarentena. Combinado? Aqui, no condomínio onde moro, as crianças estão cumprindo rigorosamente a quarentena. Não consigo vê-las nem nas varandas dos apartamentos. O silêncio é total.


Então, crianças, nesta minha carta quero partilhar algumas coisas com vocês. Umas boas e outras nem tanto. Aprendi, quando criança, que o poeta habita entre a realidade e a fantasia; que a rotina do dia a dia não diminui sua capacidade de admirar as belas coisas da vida; e, ainda, que o poeta vê a vida acontecer cotidianamente como quem contempla o primeiro voo de um pássaro ao amanhecer. Embora não sendo poeta, vou tentar colocar umas gotinhas de fantasia porque não consigo imaginar a vida sem ela.


Vivi intensamente essa experiência da pergunta com meu filho, Guilherme. Aos cinco anos ele me perguntou “como é ser mulher”. Pergunta bonita mas de difícil resposta para um menino de tão pouca idade. Falei que jamais saberia respondê-lo. Entretanto, seria muito bom que daquele dia em diante se dispusesse a observá-las e com elas aprender tudo aquilo que embeleza e dignifica a vida. Disse-lhe que as mulheres conhecem como ninguém a alma do nosso planeta e dele aprenderam a cuidar. É desse cuidado que a humanidade tanto necessita, sobretudo, agora.


Então, crianças, estou aqui pensando sobre o título desta carta. Preciso dizer a vocês que há um mundo cujo fim não desejo adiar. Falo de um mundo que não soube cuidar. Falo de um mundo que mata de fome milhares de crianças por dia. Falo de um mundo perverso com os animais. Falo de um mundo quase pelado de árvores. Falo de um mundo cujo azul do céu deu lugar ao cinza, nas grandes metrópoles. Falo de um mundo de rios morrendo. Falo de um mundo cujos oceanos em sua imensidão e poder, berço da vida, fraquejam diante da poluição do plástico e do petróleo derramado. Esse mundo de que falo tem mesmo que ser extinto, e será, se a humanidade assim o quiser. Vejam: era preciso um vírus, um monstrinho cruel e que mata muita gente, para nos mostrar que o céu pode ainda ser totalmente azul? Era preciso um monstrinho assim para nos mostrar que estávamos solitários em meio à multidão, cada um cuidando do seu próprio mundinho? O que vocês acham?


Mas a humanidade vencerá, pelo visto, como nos últimos instantes de uma partida de futebol: de virada! Assim fica mais emocionante. Depois do fim desse mundo a que me referi, um mundo novo vai surgir lentamente como o nascer do sol. Nesse mundo, a paz terá lugar no coração de todas as pessoas. Ninguém mais estará sozinho. Todos cuidarão de todos. Aqui, no Brasil, vocês vão poder brincar alegremente e com muita saúde nas terras de suas aldeias, que serão finalmente reconhecidas como propriedade legítima dos índios.


Ah! Ia esquecendo-me de perguntar qual será a contribuição que darão na construção desse mundo novo. O que pensam em fazer? Aguardo resposta.

Beijos!


Por Cícero Leão da Cunha

Carta encaminhada ao Projeto Tupiabá (parceria da Universidade Federal do Espírito Santo com a Universidade Federal do Sul da Bahia). Projeto que busca ouvir as pessoas sobre a máxima do Ailton Krenak, na seguinte questão: como podemos adiar o fim do mundo?


 
 
 

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